terça-feira, 30 de setembro de 2014

GREENWICH

Abotoou o casaco preto, empesteado com o cheiro de tabaco e perfume barato da noite anterior. Tentou arrumar os cabelos desgrenhados, que teimavam em não se assentar, e notou pelo seu pequeno espelho embaçado, a barba por fazer. Mirou por alguns segundos seus olhos cinza, inexpressivos, ou talvez velhos demais para um jovem. Não lhe pertenciam, de qualquer forma. Acendeu um cigarro, e saiu.


Encontrava-se no meio do mundo, mas havia se perdido dentro de si mesmo. O vento gélido lhe cortava o rosto, enquanto acertava o punho de seu casaco e tragava seu cigarro, preenchendo os pulmões com a fumaça quente. Atravessou a passos largos o Greenwich Park, e percebeu por alguns instantes a nuvem umbrosa de corvos pretos que circundavam todo o gramado, grasnando alto e bicando pequenos insetos. Aves curiosas, aquelas. Atirou longe o toco de fumo e estalou os nós dos dedos, ruidosamente.

A idéia que tecera a cerca de viver em Londres já havia se dissipado há tempos. Abandonara a cidade de Bristol, cheio de planos, que já haviam se anuviado junto com a quase sempre, nublada Londres. Queria ser escritor, mas todas as manhãs não havia ânimo ao se sentar à frente de sua velha máquina de escrever com seu costumeiro copo de café, em seu pequeno apartamento em Eltham. Almejava a fama, mas só era conhecido por entre as mulheres do Soho. Queria dinheiro, mas o pouco que trouxera consigo de Bristol já havia se esgotado em constante esbórnia, velho hábito que ele relutava em abandonar.

Afinal era jovem, cheio de si, e ainda lhe sobrara algum orgulho, mesmo com a precária vida que levava. Esgotava-se em álcool todas as noites e sempre retornava cambaleando com alguma mulher pendurada em seu paletó. Na noite anterior em Candem Town ele conheceu Sabrine, que lhe parecera deliciosamente agradável pela noite, mas que na primeira hora da manhã, perdera todo o seu encanto.

Cruzou a esquina e adentrou ao Greenwich Tavern, que costumeiramente freqüentava. Cumprimentou os outros homens à mesa, afundou-se no sofá acolchoado e pediu uma dose que lhe desceu pesarosa, e se sentiu nauseado. Tomou mais um gole e recostou-se para fingir alguma atenção ao que os demais diziam, com suas vozes já engroladas de bebida.


Seus amigos eram igualmente jovens, cada qual com o seu sucesso. Julian, alto e pálido, havia investido muito dinheiro no ramo da construção civil e começara a ter algum retorno significativo. Gostava de se gabar, para os colegas e para as mulheres, e no exato momento contava qualquer história que parecia agradar aos outros na mesa. Nunca soubera o motivo pelo qual aqueles homens abastados eram seus amigos. Inegavelmente, ele tinha certo charme, mas tão poucas libras no bolso. Percebeu então que se sentia incrivelmente fatigado e culpou mentalmente a noite anterior.

Entre altos brindes, falatórios e mais doses, quando começou a sentir-se tonto, repousou seu olhar vago e perscrutador em duas mulheres que compartilhavam uma refeição a mesa à frente. A mulher mais velha, de rosto pequeno e semblante austero, deleitava-se com um caldo quente, e a mulher mais nova, debulhava seu hambúrguer enquanto talvez questionasse a aparência da carne. Conversavam entre si, numa língua que ele desconhecia. 

Notavelmente, havia afeto e certa excitação por, talvez, estarem ali. Possivelmente estavam encantadas com aquela cidade, aquela Londres que já não lhe apetecia mais. Lembrou-se que há muito tempo não falava com sua mãe e irmã em Bristol, e quando retornava as ligações ele sempre afirmava que tudo ia bem, como um mantra que ele entoava repetidas vezes, para tranqüilizá-las e talvez para convencer a si próprio. 

As mulheres findaram seus pratos e repousaram os talheres. A mais velha revirou os olhos, satisfeita pela refeição que acabara de ter, e enxugava a boca. A mulher mais nova insistentemente jogava os cabelos escuros para trás, e pegou-se a fitá-lo, repousando seus olhos amendoados nos dele, por segundos que se estenderam. Talvez enxergasse nele alguma virtude, ou talvez, alguma derrota.

Perdeu-se por longos minutos a fitar aquela cena, até ter sua atenção desviada por Julian, que lhe cutucava as costelas com força, enquanto desmembrava um grande pedaço de frango que lhe fora servido à mesa, e lhe perguntava, de boca cheia, qualquer coisa que ele apenas respondeu com um aceno de cabeça, apático. Ele vivia em uma constante conversação com o invisível, como se vivesse a margem de si mesmo, no limite fronteiriço entre a normalidade e um surto psicótico, sempre tão instável, como pólvora. A frustração vinha em ondas, em curvas que nenhuma geometria do espírito acompanhava, e o afogava, dia após dia, furtivamente. O crônico sentimento de vazio que sempre o golpeava, a angústia que sempre lhe corroia os nervos.

Já ébrio, levantou-se, apanhou seu casaco e saiu da taverna, sem pronunciar nenhuma palavra aos amigos. O sol já havia se posto há horas atrás, e o céu despejava agora uma chuva fina que lhe penetrava os ossos. Caminhou vagarosamente até o píer, e admirou o Rio Tâmisa, caudaloso e agitado, pelo vento forte. Poderia atirar-se e talvez ninguém iria notar. Deliciou-se por certo tempo com a idéia de seu corpo submergindo naquelas águas frias. Assim, pela manhã, não teria que se sentar a frente de sua velha máquina de escrever, com seu costumeiro copo de café, em seu pequeno apartamento em Eltham. Com os dedos trêmulos, acendeu mais um cigarro. O amanhã haveria de ser melhor. E se não o fosse, haveria de se contentar com mais doses e mulheres para se regozijar todas as noites.

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